sexta-feira, 29 de abril de 2011

Glissando ou não glissando, eis a questão.

Na (vasta) literatura para piano há algumas obras que contém passagens polémicas. Principalmente no que diz respeito à sua execução e saber qual a verdadeira intenção do compositor.

Isto deve-se a muitos factores, mas o que é certo é que as opiniões divergem.

Um desses casos é o 3º Andamento (Rondo. Allegretto moderato - Prestissimo) da Sonata em Dó maior, Op.53 ("Waldstein") de L. van Beethoven.



Neste andamento, já na secção Prestíssimo quando chegamos ao compasso 465 (até ao cp.476) vemos isto:
(clicar para aumentar)
 
Esta edição moderna é completamente fiel ao manuscrito de Beethoven, como podemos ver aqui:

(clicar para aumentar)


Como executar então esta passagem de oitavas? há duas grandes hipóteses:
  1. Como glissandi
  2. Articulando cada nota.

Dentro da 2ª hipótese também há duas variantes:
  • a) a mão direita executa as escalas descendentes em oitavas articulando cada uma e a mão esquerda executa escalas ascendentes de oitavas articulando cada uma delas também.
  • b) ambas as mãos participam nas escalas descendentes e ascendentes. A mão direita toca a nota mais aguda de cada oitava e a esquerda a mais grave. Ao fim ao cabo estão a tocar escalas "normais" estando as mãos à distância de oitava entre si.
É de referir que dentro da variante b) ainda há algumas diferenças, nomeadamente no que diz respeito ao facto de ambas as mãos tocarem as notas todas da escala (o que é muito complicado) ou sacrificarem algumas para poderem mudar de posição. Também por vezes as escalas ascendentes são tocadas apenas pela mão esquerda sem oitavas, ou seja, apenas com uma nota de cada vez.

Bem...espero que ainda estejam a acompanhar a minha explicação...

Estas duas grandes vertentes (hipóteses 1 e 2) derivam das diferentes interpretações que os pianistas fazem da partitura. Vejamos alguns factos que resultam apenas da (minha) observação e que podem ajudar numa decisão:
  1. Dinâmica indicada: pp (pianíssimo)
  2. Dedilhação indicada:  1-5 para a mão direita e 5-1 para a mão esquerda (muitos - como András Schiff - dizem que isto é claramente a indicação de glissando. Se assim fosse, porque não escreveria Beethoven gliss. ?)
  3. Indicação de pedal: SEM pedal. O sinal para levantar o pedal (um círculo no manuscrito) está claramente presente no início do referido compasso (cp.465). Beethoven indica a utilização do pedal em toda esta Sonata (mais uma polémica...).
  4. Durante as escalas ascendentes existem acordes em simultâneo. Isto torna quase impossível tocar de outra forma que não seja a esquerda ficar com as oitavas e a direita com os acordes.
  5. Existência de ligaduras por cima das notas (legato)
  6. Beethoven no final do manuscrito explica claramente como executar os (difíceis) trilos que aparecem depois desta passagem, onde a melodia e o trilo devem ser executados em simultâneo. Dá inclusivamente duas hipóteses de execução. Já para a passagem que estou a analisar não há referência de espécie alguma. Pelos vistos, para Beethoven, esta passagem não oferecia dúvidas absolutamente nenhumas.
  7. No compasso 475, quando as duas vozes fazem escalas (sem oitavas) em movimento contrário, existe a indicação cresc. que culmina na dinâmica f (forte). Isto parece-me que também terá a sua importância na decisão a tomar. Porque razão as oitavas desaparecem nesta passagem de transição?


Em relação à prática (interpretações de pianistas), os chamados "grandes pianistas" que gravaram esta Sonata, dividem-se também em grupos. Gostaria de dividi-los APENAS entre os que pertencem à hipótese 1 ou 2, isto é, entre os que fazem Glissando e os que articulam as notas todas de uma forma (a) ou de outra (b, com as suas diferenças).

Assim, temos:
HIPÓTESE 1 (glissando)
- Emil Gilels
- Rudolf Serkin (este até tem uma história curiosa sobre esta passagem)
- Artur Schnabel
- Walter Gieseking
- András Schiff (que diz claramente em masterclasses que são claramente glissandos devido à marcação da dedilhação 5-1)

Exemplo: (Emil Gilels)


HIPÓTESE 2 (articulando)
- Vladimir Horowitz (este pode articular QUALQUER passagem em oitavas !)
- Sviatoslav Richter
- Gyorgy Cziffra (outro que pode articular TUDO o que quiser !)
- Wilhelm Kempff
- Daniel Barenboim (variante b)
- Josef Hofmann
- Eugene d'Albert

Exemplo: (Horowitz)




E vocês? o que dizem desta passagem?
Os que tocam, como fazem? Os que a tocaram, como fizeram?
Mesmo os que conhecem apenas a obra, o que acham?
E os que nunca ouviram falar desta obra, nem pensaram no assunto, qual a vossa opinião?

Deixem contributos. Obrigado.

8 comentários:

  1. Nunca toquei esta sonata mas tenho uma opinião. Penso que Beethoven não pensou em glissando quando escreveu a passagem, mas para um andamento Prestissimo penso que o glissando é a solução. Horowitz articula bem, mas parece-me que não toca Prestissimo.

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  2. Tenho exactamente a mesma opinião sobre a interpretação do Horowitz. Mas não deixa de ser uma passagem extraordinária tocada assim por ele.

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  3. Bem, uma coisa é de dizer:
    por muito que eu goste de Beethoven e o ache genial, não era um compositor propriamente atento a certos pormenores. Nota-se que ele não se corrigia muito.

    Dou o exemplo das notas abaixo do Mi grave nos contrabaixos. Há bastantes na 9a sinfonia, na 5a sinfonia há pelo menos um Dó... Provavelmente escrevia os CB's iguais aos Vlc's e nem reparou que havia notas fora do registo.
    A corda dó só começou a aparecer lá para os finais do sec. XIX penso eu. Wagner no inicio do Ouro do Reno manda os metade dos contrabaixos afinar a última corda meio-tom abaixo para ter uma pedal em Mi b, ou seja, não tinha corda dó.

    Aqui ponho um pouco a hipótese da distracção. Se calhar escreveu a indicação de andamento depois de ter escrito a música toda do 3º andamento, sem se lembrar que aquela passagem ia ser podre de difícil!

    Nunca toquei a sonata, nem tinha reparado, ainda por cima é das sonatas que menos acho piada....

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  4. Bom não creio que alguma vez tenha de saber como vou tocar esta passagem, acho que esta fora da minha liga, mas se alguma vez a tocasse acho que seria partidário do glissando. Acho que faz mais sentido ... Já agora porque é que é polémica a indicação da indicação de pedal?

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  5. Quando digo polémica, refiro-me a indicações de pedal como as que aparecem no início deste andamento (não nesta passagem em concreto).
    Por exemplo: os 8 primeiros compassos estão indicados por Beethoven para serem feitos com o pedal SEMPRE carregado. E HÁ mudanças de harmonias !
    Depois disso aparecem casos também de 10 compassos sempre com o pedal carregado. E novamente com mudanças de harmonia.
    É a isso que chamo "polémico". E pergunto: quem toca com estas indicações de pedal de Beethoven?

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  6. Sinceramente não acho que Beethoven tenha pensado em glissando quando escreveu essa passagem (até porque por ignorância minha, não sei se na altura em que a sonata foi escrita já se usava a indicação de glissando actualmente utilizada)

    Mas partindo das indicações da partitura (sem pedal, com dedilhação 1-5 e ligado) a maneira que me parece possível de se executar seguindo à risca todas essas indicações, é com um glissando.

    Acho contudo que a escrita não muito clara do ponto de vista de execução de Beethoven deve-se também ao facto de estar surdo e de consequentemente perder contacto com o exterior. Além desta passagem, o exemplo da 9ª sinfonia dado pelo Gonçalo, em que escreve, por exemplo, fá's agudos nos baixos durante bastante tempo. Penso que esse tipo de escrita se deva também a isso.

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  7. Talvez Luís, embora o seu aluno Czerny tenha dito que Beethoven ainda conseguia ouvir o discurso falado e música normalmente até cerca de 1812 (a Sonata Waldstein foi composta em 1804). Sinceramente, num génio como Beethoven, não me parece que a perda de audição seja a principal justificação.

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  8. (estive com o manuscripto na mão :P)

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